Em tempos de instabilidade institucional no país, alguns temas voltam à pauta de discussão do mundo jurídico, especialmente aqueles de responsabilização política e criminal da maior autoridade pública do país, a saber, o Chefe do Poder Executivo Federal. Todavia, no Brasil, o que seria exceção acaba por tornar-se quase regra à lógica do sistema democrático, afinal, em um presidencialismo minimamente estável, o impedimento do Presidente da República (PR) é a maxima ratio por justamente interferir no principal resultado do sufrágio majoritário e a legitimidade dele decorrente. Somente desde a Constituição de 1988, já assistimos a dois processos completos de impeachment presidencial – Fernando Collor de Mello, em 1992, e Dilma Vana Rousseff, em 2016 -, além daqueles inúmeros, mas não tão noticiados, em nível municipal e estadual. Neste instante, talvez estejamos próximos a situação inédita: o processamento de Presidente da República, pelo STF, decorrente da prática de crimes comuns, o que demandará nova rodada de esforços hermenêuticos constitucionais de toda a comunidade jurídica.
Estas considerações, por si, bastariam a uma avaliação séria e ponderada quanto aos riscos institucionais, políticos e econômicos da manutenção do sistema presidencialista da forma em que se encontra. Não há Estado que sobreviva e prospere ao longo do tempo, especialmente quando marcado por uma História de autoritarismos diversos, golpes e um nítido distanciamento do povo (enquanto comunidade jurídica participativa) do conteúdo material da Constituição, seja por motivos educacionais, que emancipariam o indivíduo do “senso comum”, seja pela própria formação histórica – o que nos leva a um ciclo que se retroalimenta, de causa e consequência. Coincidência ou não, em momentos de crises, quando alterações de rumo demandam rapidez, objetividade e legitimidade jurídico-institucional, não aguardando meses por uma solução - a morte não trabalha com o tempo dos vivos -, nosso sistema parece facilmente ser encaminhado à UTI em meio a acessos de tosse de falta de ar.
Muito embora interessantíssima esta discussão, o objetivo deste artigo é outro. Pretende-se, aqui, analisar alguns aspectos dos procedimentos de responsabilização do Presidente e Vice-Presidente da República, como forma de melhor contribuir ao debate. O Brasil bem conhece e amplamente discutiu a responsabilização presidencial decorrente de crimes de responsabilidade, marcadamente nos precedentes históricos do MS 21.564, MS 21.623 e MS 21.689, todos do Rel. Ministro Carlos Velloso e consequentes do impeachment de Fernando Collor; a ADPF 378, Rel. Ministro Luis Roberto Barroso, e posterior MS 34.441/DF, Rel. Ministro Alexandre de Moraes, gerados pelo impeachment de Dilma Rousseff[1]. Em todos os casos, o STF, fazendo jus à sua função de guardião da Carta da República, exerceu a autocontenção e limitou-se à interpretação constitucional pontual do processo de responsabilização do Presidente, reafirmando sempre que o mérito da acusação por cometimento de crime de responsabilidade cabia, exclusivamente, ao Senado Federal.
Pois então, como se concretiza a responsabilização do Chefe do Executivo no sistema Constitucional brasileiro? Prima facie, trata-se de uma das diversas ferramentas de “freios e contrapesos”, que visam tolher ou evitar o abuso de um Poder Constituído por outro, de modo a exterminar ou anular a harmonia e independência entre eles existente. O sistema deste meio, por sua vez, é complexo, mas basicamente dividido em duas hipóteses (Arts. 85 e 86, da Constituição de 1988), conforme a natureza da acusação: a) responsabilização decorrente da prática de "crimes de responsabilidade"; b) responsabilização decorrente da prática de "crimes comuns", relacionados ao exercício do seu mandato. Como já é sabido por grande parte da população – graças à política brasileira dos últimos 30 anos e à crescente exposição do Judiciário no noticiário político -, os "crimes de responsabilidade" consistem em condutas previstas pela lei 1.079/50, possuindo conteúdo administrativo-político, enquanto os "crimes comuns" são condutas típicas, antijurídicas e culpáveis, descritas pelo Código Penal e/ou outras leis específicas. No primeiro caso, o praticante da conduta é, necessariamente, o Chefe do Executivo; no segundo caso, poderá ser tanto o Chefe do Executivo (desde que o suposto crime tenha ocorrido durante o mandato) quanto qualquer pessoa, resguardadas as exceções da lei penal.
As hipóteses também se diferenciam quanto à função de processamento e julgamento. No caso da prática de crimes de responsabilidade, esta função recai sobre o único Poder Constituído eleito pelo povo, que não o próprio Executivo, a saber, o Legislativo, após denúncia de qualquer cidadão (acompanhada de provas), por meio do processo descrito pela Lei 1.079/50, interpretada conforme a Constituição na ADPF 378 e complementada pelos regimentos das Casas Legislativas envolvidas. No caso da prática de crimes comuns, a função recai sobre o Poder Judiciário, após denúncia ofertada pelo Ministério Público, acompanhada de provas produzidas em inquérito policial, mediante processo estritamente judicial. Por estes motivos, além de outros decorrentes do próprio sistema democrático, no primeiro caso admitem-se argumentos políticos e a decisão final não demanda fundamentação, bastando um “sim” ou “não” do parlamentar (vide art. 68, caput, da lei 1.079/50); já no segundo caso, a discussão é estritamente técnica e demanda fundamentação do julgador (art. 93, IX, da CR/88) no édito condenatório.
Os meios também se diferenciam pelas sanções impostas. Do processo de impeachment somente decorrerá a perda do mandato (em primeira votação da Casa, por maioria absoluta) e a suspensão dos direitos políticos por oito anos (em segunda votação, por maioria absoluta); já do processo de crimes comuns, em acórdão irrecorrível, poderão decorrer: a perda do mandato; as penas tipicamente restritivas de liberdade, por permissão do §3º, do art. 86, da CR/88; outras sanções que o tipo penal infringido preveja.
Dito isto, quem julga o Presidente da República? Ora, a prática de crimes de responsabilidade será processada e julgada pelo Senado Federal (art. 52, I, da CR/88), enquanto a prática de crimes comuns, pelo Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, b, da CR/88). Haveria, porém, ponto comum? A resposta é positiva. Ambos os processos dependem, para serem deflagrados, de autorização da Câmara dos Deputados, por votação de dois terços da Casa (art. 51, I, da CR/88) – matéria já assentada na Questão de Ordem no Inquérito Penal 4.483/STF.
Há que existir, portanto, vontade política prévia do Parlamento em ver o Presidente responsabilizado por seus atos; neste sentido o STF já prestou entendimento à lei 1.079/50 de que o procedimento na câmara não visa analisar o mérito da denúncia ou produzir provas quanto à sua (im)procedência, mas, tão somente, autorizar a deflagração do processo no Senado, após juízo discricionário quanto de oportunidade e necessidade[2]. Apesar de interpretação tentadora, seria ilógico extrair do sistema que um Poder que não exerce mandato popular, tal qual o Judiciário, pudesse deflagrar procedimento processual penal cujo fim resultaria na perda do mandato do Chefe do Executivo, sem a prévia autorização da Câmara dos Deputados, pois estaria ausente o elemento legitimador da vontade popular neste intento. Expandindo o pensamento, o mesmo poderia ser dito quanto ao Senado Federal, na medida em que, na estrutura da República, apesar de senadores deterem mandato eletivo majoritário, estes não representam a vontade popular, mas sim a vontade dos Estados da Federação – algo nítido na diferença de composição de ambas as casas, Câmara e Senado, já que há distribuição proporcional do número de deputados por Estado, na primeira, e igualitário por Estado, na segunda.
O que está escrito acima é fácil de notar quando tratamos de processos de impeachment, mas não tão claro nos casos de processos judiciais penais que visam a responsabilização presidencial. É dizer: para que crimes de responsabilidade sejam processados e julgados, basta que o presidente da Câmara dos Deputados envie a denúncia para comissões temáticas da Casa ou diretamente ao Plenário, resguardado o direito de defesa do acusado durante dez sessões da Casa, para deliberação quanto à deflagração do processo pelo Senado; já no caso de processos criminais, estes deverão aguardar a conclusão dos inquéritos policiais e a denúncia ministerial - ou somente esta, quando o Procurador Geral da República se sentir convencido de que as provas já existentes são suficientes à oferta da denúncia -, para então se requerer a autorização dos parlamentares que representam o povo.
Interessante discussão que vem sendo travada nos meios judiciais, especialmente no MS 37.083, Rel. Ministro Celso de Mello, é quanto ao dever do Presidente da Câmara em apreciar a denúncia ofertada em face do presidente da República, pelo cometimento em tese de crime de responsabilidade. Este dever, alegam os autores do MS, decorreria do direito de petição de qualquer cidadão que não só pode requerer algo formalmente do Poder Público, como também do dever do Estado em prestar uma resposta em tempo adequado. Contudo, no caso do processo de impeachment, não há qualquer previsão normativa quanto ao prazo para apreciação do pedido. Aqui, alvíssaras à sua Excelência, o decano da Casa, ao não decidir os requerimentos cautelares de plano, sem antes ouvir todos os envolvidos.
Quanto ao mérito do dever, com todas as vênias, este inexiste. Da mesma forma que, em tese, prejudicial à República e ao cidadão a demora na apreciação do pleito, pelas razões já expostas no início do texto, existisse dever de apreciação em 15 dias da denúncia, pelo Presidente da Câmara, reduzir-se-ia a quase nada o juízo discricionário e político de responsabilização do PR, preenchido em sua análise por inúmeras questões que não só estritamente jurídicas, sendo certo que este poderia ser exercido com maior efetividade em momento posterior ao invés de forçar-se um arquivamento inoportuno e precipitado da denúncia por crime de responsabilidade. O direito do peticionário a uma resposta em tempo razoável, assim, não deve ser meio para grave interferência no necessário juízo político, inerente ao processo.
Outro ponto relevante da discussão é: deve o PGR oferecer denúncia ao STF, caso a PF indicie o PR? A resposta é negativa, na medida em que o Ministério Público, enquanto titular da ação penal, em concluindo serem as provas colhidas durante a investigação insuficientes ao oferecimento da denúncia, poderá pedir o arquivamento do processo. Como o PGR é a maior autoridade do Ministério Público, por óbvio não poderia o Relator no STF encaminhar os autos a outra autoridade (Art. 28, §1º, do CPP). Mas e se o PGR ficasse inerte, nem oferecendo a denúncia e nem promovendo o arquivamento, quando lhe couber fazê-lo no prazo legal? Neste caso, poderia ser possível a promoção da ação penal diretamente pelo interessado, de forma subsidiária, como permite o Código Penal (art. 100, §3º).
Em continuidade, e já finalizando esta breve ponderação sobre os processos de responsabilização presidencial, resta brevemente explorar o afastamento do PR de suas funções em decorrência daqueles. Pois vejamos: após o juízo político superficial da denúncia relativa a crimes de responsabilidade ou comuns, pela Câmara dos Deputados, e sua consequente aprovação em quórum qualificado (2/3), o Presidente da República será imediatamente suspenso de suas funções, por 180 dias, nos termos dos §§ 1º e 2º, do art. 86, da CR/88. Caso não encerrado o processo neste prazo, o Presidente retornará ao cargo (§2º, art. 86, CR/88). Restaria, contudo espaço para “afastamento cautelar” do PR, seja pelo Presidente da Câmara, seja pelo Ministro Relator de processo criminal, no STF?
Neste sentido, e como contribuição ao debate, respeitadas opiniões diversas, parece não haver espaço para o exercício de um “poder geral de cautela” no afastamento do Chefe do Executivo, in limine, seja mediante pedido formulado ao STF ao longo de processo de impeachment ou em processo judicial criminal de sua jurisdição, por decisão fundamentada do Relator, dado que a própria Constituição da República elegeu procedimento próprio e restritivo, a ser interpretada como prerrogativa funcional. O mesmo se aplica ao Presidente da Câmara dos Deputados que somente exerce o papel de maestro procedimental na etapa de autorização, distribuindo o trabalho em Comissões e pautando a votação em Plenário, não havendo outorga constitucional de poderes para o afastamento presidencial e observado o argumento anteriormente exposto.
As engrenagens da República, em derradeiro, devem funcionar conforme o consenso constitucional, apesar da necessidade momentânea de medidas rápidas e impensadas, visando a preservação de princípios constitucionais. Caso nos distanciemos deste consenso fundamental e fundante, nos jogaremos no abismo do populismo e das respostas simples. No Estado Democrático de Direito, afinal, o Poder se exerce nos termos e limites da Constituição, não sendo propriedade de quem temporariamente o detém.
[1] Resumir estes julgamentos em algumas linhas de nota de rodapé é dever ingrato. Todavia, um dos postos mais relevantes do quanto assentado na ADPF 378 é, certamente, a separação clara dos poderes de cada uma das Casas do Parlamento. Quanto a isto, restou estabelecido que à Câmara dos Deputados caberá apenas analisar politicamente o interesse em haver o Chefe do Executivo responsabilizado, enquanto, ao Senado Federal, caberá papel dúplice, a ser aceito em duas votações distintas: a primeira, por maioria simples, visa a instauração do processo em si (similar ao recebimento da denúncia, no processo criminal), de modo a que os Senadores possam dar início à fase instrutória do processo de responsabilização; a segunda, por maioria absoluta, visa deliberar sobre o mérito da acusação (logo, função julgadora), servindo como decisão terminativa de mérito da qual não caberá recurso a qualquer outro Poder. [2] Neste sentido, veja-se parte da ementa do julgamento da ADPF 378, em seus incisos II, item 2.2, e IV, item 3, verbis: “(...) 2.2. Essa sistemática foi, em parte, revogada pela Constituição de 1988, que, conforme indicado acima, alterou o papel institucional da Câmara no impeachment do Presidente da República. Conforme indicado pelo STF e efetivamente seguido no caso Collor, o Plenário da Câmara deve deliberar uma única vez, por maioria qualificada de seus integrantes, sem necessitar, porém, desincumbir-se de grande ônus probatório. Afinal, compete a esta Casa Legislativa apenas autorizar ou não a instauração do processo (condição de procedibilidade)” e “(...) 3. Item “h” (equivalente à cautelar ”c”): concessão parcial para: 1. declarar recepcionados pela CF/1988 os arts. 19, 20 e 21 da Lei nº 1.079/1950 interpretados conforme a Constituição, para que se entenda que as diligências e atividades ali previstas não se destinam a provar a (im)procedência da acusação, mas apenas a esclarecer a denúncia”
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