Após uma tenebrosa primavera e quente início de verão, chegamos ao fim de nossa pequena saga de textos. Desde nosso último encontro, temos um novo Chefe do Poder Executivo, eleito no pleito de outubro do último ano, um novo desastre humanitário tipicamente brasileiro – “é a lama, é a lama”, cantaria Tom Jobim – e algumas primeiras promessas de reforma do sistema tributário brasileiro, capitaneadas pelo superministro Paulo Guedes, com ideias que discutimos no último texto (tributação de lucros e redução do imposto de renda de pessoas jurídicas).
Como prometido no último texto da série, abordaremos nesta última parte duas espécies tributárias, classificados de acordo com sua matriz de incidência, quais sejam, as incidentes sobre consumo e patrimônio. Não será tarefa fácil. Entretanto, certamente será divertida e um convite à inventividade estrutural humana.
Pois bem. Conforme amplamente debatido nos textos anteriores, um sistema fiscal somente poderá ser justo se firmado em uma forte raiz filosófica de equidade; com isto, afirmamos que a regressividade fiscal deve ser combatida e pouco incentivada. Mas existe um paradoxo neste pensamento, quando pensamos a respeito dos tributos incidentes sobre o consumo: dado que esta espécie, em sua essência, não se preocupa com a capacidade contributiva do sujeito passivo da relação tributária, mas tão somente com o valor do produto em circulação na economia, em termos finais, sempre haverá um grau de regressividade na matriz dos tributos indiretos.
Em outras palavras, quando o consumidor adquire sua mercadoria ou serviço, não lhe é perguntado sobre sua renda ou patrimônio. A única pergunta feita é: deseja ou não adquirir este produto? Se sim, o consumidor naturalmente sustenta todo o ônus dos tributos indiretos no pagamento do preço, queira ou não. Desta forma, apresento o primeiro problema a ser enfrentado por eventual proposta de reforma do sistema: a discussão, aqui, não trafega (somente) no sentido de tributar ou não determinado bem de consumo; mas sim, efetivamente, o quanto devemos tributar esse produto ou serviço – e se o modelo de arrecadação deve se sustentar, majoritariamente, nesta matriz indireta.
Pausa para reflexão. Se o preço do produto ou serviço é composto de um percentual médio de 40% a título de tributos, naturalmente isto pode significar que o preço final independe, em grande parte, de uma escolha do agente produtivo e de um aceite do consumidor final. Onerar excessivamente o consumo, através de tributos, é indiretamente criar entraves ao desenvolvimento da cadeia produtiva, cada vez mais obrigada a realizar complexos cálculos financeiros para ofertar um produto/serviço com preços competitivos e qualidade condizente; ao mesmo tempo, o poder aquisitivo do trabalhador de classe média e pobre é vastamente afetado, dado que o custo efetivo dos impostos nos produtos essenciais à vida moderna representa boa parte de sua renda mensal (vide parte II desta série, segundo gráfico).
A conclusão que chego, ao primeiro problema, é a de que, naturalmente, precisamos diminuir o impacto dos tributos sobre o consumo, como um todo, de modo a nos aproximarmos do standard praticado em países da OCDE – nos quais esta espécie representa somente 1/3 da arrecadação total –, seja por meio da redução da alíquota nominal, seja pela extinção de determinados tributos já existentes. Com isto, criaríamos um mecanismo de (provável) aquecimento da economia, gerado pelo ganho no poder aquisitivo do consumidor final – em nosso país, majoritariamente composto por trabalhadores de média ou baixa renda - e aumento na competitividade de preços praticados.
O segundo problema que desejo trazer à discussão, sobre a reforma desta espécie tributária, é o seguinte: nosso sistema é verdadeiramente complexo, com diversas esferas do pacto federativo competindo entre si para receber uma maior fatia da receita fiscal, cada qual com regulamentos específicos e rotinas próprias (vide parte I, desta série). Perversamente, todos os entes federativos – União, Estados e Municípios – tributam, cada qual a seu modo, a mesma hipótese de incidência: o faturamento empresarial, representado pelo conjunto dos preços de mercadorias/serviços. O PIS, a COFINS e o IPI, na União; o ICMS, nos Estados; o ISS, nos Municípios. Todos com seus regramentos próprios, alterados quase diariamente, suplementados (ou suplantados, muitas vezes) por portarias e resoluções dos órgãos fiscalizadores (Receita Federal ou Secretarias da Fazenda estaduais e municipais).
Não é por menos que o tempo efetivamente gasto pelos setores produtivos para cumprir as obrigações rotineiras básicas é um dos maiores do mundo, sem falar do custo. Tão ineficiente é a manutenção do sistema, com suas constantes alterações, mudanças de entendimentos e excessiva utilização do poder regulamentar dos fiscos, que criamos um ambiente econômico em que é mais interessante investir altas somas de dinheiro em planejamentos tributários abusivos do que, efetivamente, buscar a implementação de uma rotina de adequação plena. No fim do dia, “nivelamos por baixo” nossa arrecadação, ao incentivarmos grandes sonegadores e desincentivarmos os pagadores de impostos.
(pausa importante: isto vale tanto para impostos diretos como indiretos; contudo, como estes últimos são nosso tema, continuemos)
Ao meu sentir, chegamos ao ponto em que a única conclusão possível é a de que precisamos de um novo pacto fiscal, o qual deve envolver, necessariamente, um novo pacto federativo. Não entrarei na complexa discussão deste último; todavia, pretendo contribuir com algumas ideias, alinhadas com as premissas trazidas na parte II, de nossa série.
Em primeiro lugar, precisamos unificar as diversas rotinas que envolvem a tributação sobre o consumo em uma única, extinguindo os “penduricalhos fiscais” e os diferentes tributos que, ao fim e ao cabo, utilizam a mesma base de cálculo. A proposta de criação de um IVA (Imposto sobre Valor Agregado), de competência federal, que unificaria o PIS/COFINS, IPI, ICMS e ISS, me parece adequada, desde que adaptada à realidade brasileira.
O IVA, penso, deveria possuir os seguintes critérios norteadores: a) a alíquota praticada pelo imposto seria determinada pela essencialidade do produto/serviço, limitada a não mais que 30%; b) vez fixada a alíquota para determinado bem de consumo, esta seria aplicada nacionalmente; c) sua incidência se daria no destino, não na origem; d) as diferentes rotinas e regulamentos seriam unificados em um único procedimento, cuja iniciativa de edição e alteração seriam do Senado Federal; e) as Fazendas Estaduais seriam responsáveis pela fiscalização conjunta à Receita Federal da arrecadação, compartilhando dados e cobrando os contribuintes inadimplentes; f) as receitas provenientes da arrecadação do IVA seriam destinadas, majoritariamente, aos Estados, seguidos por maior participação dos Municípios, e, por último, a União, cuja menor parte seria destinada ao custeio da Seguridade Social; g) a competência legislativa dos Estados (bens de consumo que não serviços) e Municípios (serviços), se limitaria às hipóteses de exclusão do crédito tributário (anistia e isenção), respeitada sua parcela e o critério (c).
Em derradeiro, porém ainda sobre o tema do IVA, precisamos acabar com o hábito pouco republicano das concessões de benefícios fiscais completamente apartadas de uma lógica de política pública. Necessitamos compreender, enquanto República, que a concessão de um benefício fiscal implica, na maioria esmagadora das vezes, em relevante renúncia de receitas com base em, tão somente, uma perspectiva imaginada de aquecimento da economia local – via geração de empregos ou incentivo ao consumo em larga escala. Contudo, quando um setor econômico é desonerado e a matriz fiscal do país é essencialmente pautada pela tributação sobre o consumo, outro setor igualmente relevante pagará o preço pelo déficit – especialmente em tempos de crise. O benefício fiscal deve ser justificado, ter sua eficácia constantemente testada, por meio de avaliações econômicas periódicas de impacto, e atentar para a menor redução possível de receita pública.
Dito isto, avancemos um pouco nosso diálogo e falemos sobre tributos incidentes sobre o patrimônio, lembrando que sua base de incidência é o valor bem (imóvel, veículo automotor, etc). Abordarei somente duas espécies neste texto, o ITCMD e o IPTU, dado que o esgotamento do assunto não é nosso objetivo.
Comecemos pelo ITCMD – imposto sobre transmissão causa mortis e doações. A proposta que trago para reflexão é a da federalização do ITCMD, por meio de lei de iniciativa do Senado (ampliando o disposto no art. 155, §1º, IV), com receitas repartidas, primordialmente, entre os Estados e Municípios. Além disto, teria alíquota progressiva por faixas de acordo com o montante dos bens a serem partilhados. O objetivo é unificar a arrecadação e relatório de dados com o Fisco Federal – já titular das declarações de renda da pessoa física -, garantindo que todos os bens sejam ofertados a tributação, no momento da abertura do inventário.
Ademais, a promoção de alíquotas progressivas, com regras unificadas, contribuirá para a promoção de maior equidade e tributação justa entre pequenas, médias e grandes fortunas – lembrando que, em tese, a Constituição da República (art. 153, VII) prevê a criação de um imposto sobre grandes fortunas, mas... quem se importa?
Outro tributo relevante, senão o principal, é o IPTU - de competência Municipal - verdadeira dor de cabeça para muitos tributaristas. Afinal, como se é calculado o imposto? Qual sua base de cálculo, o valor venal do imóvel ou o chamado “valor de referência”? A resposta é a mesma: sempre dependerá do município onde se localiza o imóvel, o estabelecimento do critério. Naturalmente, há um grave problema neste modo de agir: o valor venal do imóvel raramente representa o valor efetivo de mercado; o “valor de referência”, por sua vez, se bem empregado, pode suprir esta disparidade, mas, se mal-empregado, pode criar uma distorção enorme entre os contribuintes. Assim, a Justiça Fiscal é relegada a segundo plano, quase sempre apartada da realidade urbana.
A reflexão que proponho é, para além do óbvio, seguirmos o texto constitucional, especialmente em seus arts. 156, §2º, I e II, e 182, § 4º. Aqui, portanto, não falaremos de reforma estrutural, mas da maneira de pensar. O que quero dizer é simples: o IPTU não pode estar apartado da realidade urbana do município em que é cobrado. Não pode ser instrumento político de manutenção e barateamento de zonas urbanas, atendendo exclusivamente a interesses especulativos. Explico. O art. 156, §2º, fornece duas hipóteses que não são seguidas por boa parte dos Municípios brasileiros, o que gera déficit na arrecadação e distorções sociais: a) a progressividade do imposto em razão do valor do imóvel; b) a criação de diferentes alíquotas conforme a localização do imóvel e sua destinação urbana.
Ou seja, não somente o IPTU pode ser progressivo conforme o valor do imóvel, em respeito ao princípio da capacidade contributiva, como pode ser cobrado de acordo com o desenho urbano e sua destinação – afinal, os impactos urbanos da utilização de um imóvel como residência são infinitamente distintos de, por exemplo, uma indústria. Ademais, a adoção do modelo de “valor de referência”, para a composição da base de cálculo do imposto, é medida de primeira hora, desde que, obviamente, amparado por estudos especializados de uma equipe municipal multidisciplinar de urbanistas, economistas e juristas, anualmente atualizado. Com isto, evitaríamos disparidades entre o valor venal e o valor de mercado do imóvel, onde, por vezes, imóveis extremamente valorizados possuem baixo valor venal ou são pouco valorizados e possuem valor venal equivalente ou, até mesmo, superior ao efetivo. Por meio da aplicação destas matrizes constitucionais, penso, é possível corrigir estas distorções e distribuir, equitativamente, o ônus pela utilização dos serviços municipais.
Mas a Constituição, em sua sabedoria, não se limitou a apenas isto. O art. 182 visa punir o proprietário que não edifica, subutiliza ou, simplesmente, não utiliza o imóvel urbano, propondo três sanções inteligentes e sucessivas: 1) parcelamento ou edificação compulsórios; 2) a progressividade do IPTU no tempo, portanto, independente do valor do imóvel; 3) desapropriação mediante títulos da dívida pública, com resgaste em até dez anos.
A razão não poderia ser outra: em um país cada vez mais urbanizado, a moradia e a má utilização do solo urbano são problemas de primeira ordem, prioridades para permitir um convívio civilizado entre os cidadãos. Não são poucos os casos de terrenos ou imóveis desocupados ou sequer utilizados, localizados em regiões centrais ou de alto valor, de nada servindo ao avanço social da comunidade em seu entorno. Logo, neste prisma, o direito à propriedade privada é mitigado face ao interesse público de fornecimento de um padrão minimamente adequado de qualidade de vida urbana a todos e, a função social da propriedade, garantida em seu aspecto material. O problema, todavia, é justamente a ineficiente fiscalização municipal e os subterfúgios legais, trazidos por leis do município, que permitem a fuga dessas punições e a prática especulativa recorrente, algo que clama reforma no modo de pensar tanto do administrador público, quanto do legislador municipal.
Com isto, encerro esta longa série de discussões e possíveis ideias para a formatação de uma reforma tributária, a qual visa encarar o tributo como verdadeira política pública de incentivo ou desincentivo da atividade econômica e correção de suas distorções. Como já falado outras vezes, não é a intenção desta série promover o esgotamento do tema, mas propor diretrizes que podem ser utilizadas pelo cidadão para o debate com seus governantes. Busquei tangenciar os principais temas da realidade hoje, todos somente a ponta de um grande iceberg a ser explorado nos próximos anos. O futuro nos pertence. Com uma abordagem estrutural aos problemas normativos – e normativos aos problemas estruturais, por vezes -, certamente superaremos muitos de nossos entraves históricos.
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