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REFORMA TRIBUTÁRIA: UMA POLÍTICA PÚBLICA SÉRIA E NECESSÁRIA (parte II)

Caro leitor, se você conseguiu atravessar a dor do primeiro artigo sobre reforma tributária, seja bem-vindo ao Bojador de nosso tema. Ou quase. Dada a extensão do tema, teremos uma parte III. Uma trilogia, como todo bom “nerd” (como que este que vos escreve) gosta.


Após todo o exposto em nosso último diálogo, resta-nos, sem grandes pretensões, apresentar mais alguns dados sobre o sistema fiscal brasileiro. Ademais, ao fim, tentarei expor algumas ideias acerca de possíveis propostas de alteração de nosso sistema de tributação sobre renda e lucros, sem grandes voltas, pois o tema é – verdadeiramente – extenso, controverso e um assunto nada agradável para ser trazido à mesa de jantar. As demais espécies tributárias (incidentes sobre patrimônio, consumo e folhas de pagamentos) ficarão para a parada final. Porém, como corajosos que somos, não há razões para temer o que virá.


Em tempos estranhos – no mais amplo sentido que a expressão possa ter – parece ser difícil buscar uma racionalidade em meio ao caos. Contudo, a tarefa árdua do convencimento e da elucidação deve ser tentada e praticada por todos aqueles que se considerem cidadãos participantes de uma realidade global e democrática, sob pena do triunfo da irresponsabilidade e da má-fé. E, por mais incrível que a assertiva anterior possa parecer, quando falamos de tributos, o consenso parece ser mais facilmente obtido.



Antes de adentrarmos ao mérito, todavia, traçarei algumas premissas argumentativas que, penso, servirão como “grau zero” de honestidade em nosso diálogo, ao longo deste e do próximo artigo:

  1. Um mundo global, marcado por uma economia e sistema de distribuição complexos demandam, por si só, a presença de pensamentos inovadores na engenharia fiscal;

  2. Hoje, falar de “sistema fiscal justo” passa pelo debate necessário e amplo de “país competitivo”;

  3. Pensar em “país competitivo” de forma dissociada dos parâmetros globais – leia-se, aplicados em economias desenvolvidas ou em desenvolvimento estável - é praticar um discurso isolacionista e nacionalista tacanho, restringindo o debate ao campo do “interesse nacional x interesse global imperialista”, resultado nada desejável;

  4. Qualquer reforma que venha a ser empreendida e tentada pelos poderes políticos do Estado deve partir do pressuposto de buscamos um sistema tributário “equitativo” e não de um sistema tributário “proporcional”, sob pena de postergar as distorções já existente no plano fiscal;

  5. Com isto em mente, quanto mais inteligente o sistema de transmissão de capital, do bolso das famílias e indivíduos para o Estado, maior o potencial de consumo do mercado, fator gerador de emprego e renda para todos os agentes da sociedade;

  6. A carga tributária não deve ser utilizada como instrumento de “desenvolvimento regional”, sob pena de eterna guerra fiscal entre os Estados da federação e baixa destinação, senão nenhuma, da capacidade produtiva das unidades federativas do país aos setores que, efetivamente, transformem a economia local em competitiva e geradora de postos de trabalho com remuneração adequada;

  7. A regressividade fiscal, presente em grande escala nos tributos indiretos, é uma realidade. Enfrentá-la, é um dever. Em uma economia competitiva, cuja base é o consumo majoritário das classes média e baixa, a formação de poupança deve ser importante, mas não ao ponto de sugar boa parte da renda familiar produzida – especialmente em um país como o nosso, ainda em desenvolvimento e com graves problemas históricos de acúmulo de renda, nas mãos de minúsculo percentual da população.

  8. O capital estrangeiro é desejável, especialmente aquele que visa a abertura de postos de trabalho e desenvolvimento local. Isto não quer dizer a completa extinção dos impostos extrafiscais, especialmente os de importação e exportação, que visam a proteção do mercado local face à invasão de produtos estrangeiros a preços que, praticamente, vedam a concorrência igualitária. O incentivo ao investimento estrangeiro pode, também, ser encarado como política pública – sendo sua evasão evitada por meio de sua estrutura.

  9. Em derradeiro, as isenções fiscais, os regimes tributários especiais e os refinanciamentos de dívidas não podem ser utilizados como instrumentos de obtenção de ganhos políticos, mas sim como verdadeiras e necessárias políticas públicas. É dizer: a simples outorga de benefícios, sem o estabelecimento de critérios razoáveis de concessão e de verificação de resultados, somente causam rombos nos orçamentos públicos, com baixo retorno social. Em suma, atrelar benefícios fiscais aos interesses desenvolvimentistas de um plano de nação, com constante reavaliação de resultados, é uma das melhores maneiras de evitar rombos futuros.


Traçadas estas primeiras considerações, passemos aos dados, partes essenciais de nossa empreitada. Analisemos os números da composição da matriz tributária brasileira quando comparada à média dos países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), emitidos em 2016[1], pela Receita Federal do Brasil, analisando sua evolução entre os anos de 2006 e 2015:



Este quadro nos mostra muito. Em primeiro lugar, a carga tributária brasileira, na média, é similar à de países desenvolvidos da OCDE. Contudo, sua composição destoa - e muito - do que vem sendo praticado pelo resto do mundo. Enquanto somente 18,4% (proporcionalmente) da carga tributária brasileira diz respeito à tributação de renda, lucros e ganhos de capital, os países da OCDE, na média, estruturaram 33,5% de sua carga total para tributar a mesma natureza; as folhas de pagamentos representam 26,2% do total, no Brasil, contra 29,8%, nos membros da OCDE; propriedades representam 4%, no Brasil, face a 5,3% nos membros da OCDE; bens e serviços respondem por 49% da carga total, no Brasil, contra 32,4% nos membros da OCDE; e outras fontes representam 2,4%, no Brasil, face a menos de 1% nos membros da OCDE.


Com estes dados, é possível dizer que, enquanto os países desenvolvidos focam esforços fiscais, majoritariamente, na renda, salários e patrimônio dos indivíduos (68,6%), o Brasil foca a maioria de sua carga tributária nos bens, serviços e outros (51,4%). Em resumo, o Brasil compensa sua elevada carga tributária sobre bens e serviços com a baixa tributação sobre renda, lucros e ganhos de capital. Com isto, chegamos a duas conclusões: a) nosso país não está próximo dos parâmetros internacionais de tributação; b) o país escolheu onerar mais o consumidor e menos o rentista, o oposto da OCDE.


De modo a não transformar nosso diálogo em mera propaganda político-ideológica – o que algumas correntes de pensamento adoram fazer -, voltemos às premissas que construímos no início deste texto e ao longo do último: um sistema tributário equitativo deve, não somente, ser filosoficamente justo, mas equitativo na realidade, logo, progressivo. É dizer, quem mais produz e acumula riquezas, mais contribui com os ingredientes do bolo.


De acordo com as Pesquisas de Orçamentos Familiares, realizada pelo IBGE, nos anos de 2002/2003 e 2008/2009, e consolidada pelo IPEA em seu Comunicado nº 92, de 2011, os tributos brasileiros podem ser assim representados no orçamento familiar brasileiro, dividido em 10 faixas de renda (ou décimos), do grupo mais pobre para o grupo mais rico[2]:


O gráfico não deixa muitas dúvidas quanto à clara regressividade da tributação indireta (atrelada ao consumo, portanto) sobre os orçamentos familiares brasileiros. Enquanto essa representava 28% no orçamento familiar mais pobre, para o orçamento da última faixa alcançava meros 11% - destaque ao nono décimo contributivo, com algo próximo a 14%, três pontos percentuais acima do último. Ou seja, quem menos tem, mais contribui para a parcela dos 51,4% totais de carga tributária indireta, no Brasil, apontados anteriormente. Inexiste equidade.


A tributação sobre a renda, por sua vez, apresenta aparente progressividade; contudo, vale lembrar que a tabela de cálculo do IRPF possui somente cinco alíquotas e faixas de renda, todas com valores desatualizados em relação ao crescimento inflacionário dos últimos anos, o que gera o efeito de baixa variação de percentual nas faixas de classe média (3º a 8º décimos). Com este sintoma em mãos, o IPEA se debruçou sobre as declarações de imposto de renda de pessoas físicas do ano de 2014 (ano-base 2013), e extraiu os seguintes dados[3]:



São dados que chocam; porém, não são inesperados. Como se nota, a alíquota efetiva somente cresce até a mediana patrimonial das famílias (R$162,7 mil a R$325,4 mil ao ano), atingindo seu ápice em 11,8%, para então ser reduzida até a última faixa contributiva (mais de R$1.300,8 mil), cuja grandeza beira os míseros 6,7%. Igualmente, vivemos sob a égide de um sistema de tributação direta pouco ou nada progressivo, logo, nada equitativo. Com isto em mãos, não resta muitas dúvidas: a classe média, efetivamente, contribui proporcionalmente mais para o custeio da máquina estatal.


Outro importante dado para este diálogo é o volume de renúncias fiscais no Brasil. De acordo com o secretário da Receita Federal, Jorge Antônio Deher Rachid, em entrevista à revista Valor Econômico, em maio deste ano, a realidade brasileira deveria ser distinta da atual[4]. Atualmente, somente a nível federal, a renúncia fiscal chega ao patamar de 270 bilhões de reais, o que implica, em termos orçamentários, num percentual de 20% de perda da receita esperada, a qual totaliza 1,34 bilhões. O padrão internacional de renúncia, de acordo com o Secretário, é de 10% - metade do que é hoje praticado.


A questão que permanece, aqui, é simples: não há economia competitiva sem incentivos governamentais, usualmente garantidos por meio de renúncias fiscais de médio/longo prazo. A renúncia de receitas, por outro lado, tal qual qualquer outra política pública, deve ter razões relevantes que a embasem, bem como sistemas de fiscalização e controle de desempenho/resultado que a chancelem ou não; contudo, no cenário brasileiro, são poucos ou inexistentes os dados sobre a efetividade destas políticas de desoneração. A nível estadual, por sua vez, estas políticas beiram o completo descontrole, com efeitos nefastos às contas públicas e quase nenhum retorno na melhora de vida da população. Trata-se, pois, de um instituto legal usado, em larga escala, para vencer "guerras fiscais" fadadas ao fracasso, sem parâmetros claros e mecanismos de verificação de resultados esperados, vez que ausente um projeto de desenvolvimento nacional/estadual.


Pois bem. São os dados relevantes que precisamos para começar a desenhar algumas ideias e soluções adequadas face ao diagnóstico que até o momento temos. Neste artigo, como dito, abordarei somente a tributação sobre renda, lucros e ganhos de capital.



Diferentemente de quase o resto do globo terrestre (aquele abraço à Estônia), o Brasil isenta os pagamentos a títulos de retirada de lucros de pessoas jurídicas, sob a alegação de que, dada a elevada alíquota fiscal do IRPJ e da CSLL (34%, em média), não haveria razões para o retorno da tributação de lucros. Os números, como acima expostos, apontam para situação diversa. De acordo com dados apresentados pela ONU[5], em países da OCDE a tributação total do lucro chega a 48% (sendo 64% na França, 48% na Alemanha e 57% nos Estados Unidos). A tributação sobre lucros é tão essencial à lógica de sobrevivência do pacto fiscal que a tendência do mundo é tributar menos a pessoa jurídica e mais a pessoa física, quando no recebimento do proveito econômico empresarial.


A razão é esta: o lucro é meta de qualquer empreendimento capitalista; assim, o resultado da operação sempre flui para os caixas de uma pessoa física ou jurídica, titulares do direito de retirada. Com isto, evita-se a evasão fiscal no momento final da cadeia de transmissão do capital. Tributar somente o lucro “contábil” (“presumido” ou “real”), como é feito no Brasil, é técnica aberta à prática de planejamentos fiscais abusivos, que visam a erosão da base de cálculo tributável, tendentes a conquistar uma possível remessa final do lucro, ao destinatário, quase sem tributação.


Neste sentido, precisamos, sim, aumentar a carga tributária efetiva sobre impostos diretos, mas não de qualquer maneira. Caso voltemos a tributar remessas de lucros, devemos diminuir, drasticamente, a tributação incidente sobre a pessoa jurídica – esta, sim, fonte do desenvolvimento econômico nacional. Estabelecer-se-ia alíquota fixa de retenção na fonte, no momento da retirada do lucro, de 15% ou 20%. Caso o lucro seja destinado à pessoa física, os rendimentos seriam naturalmente tributados de acordo com a tabela do IRPF, respeitada a parcela já retida; caso destinado a outra pessoa jurídica, a tributação retida na fonte, do montante recebido, poderia, naturalmente, ser compensada com o valor final do IRPJ.


Afinal, a retirada de lucros é faculdade dos titulares, não obrigação legal; caso o lucro permaneça na pessoa jurídica, inexistiria tributação complementar, somente a alíquota reduzida do IRPJ e da CSLL, permitindo posteriores reinvestimentos na própria empresa.



Outro relevantíssimo detalhe a ser corrigido na tributação direta é a progressividade meramente formal (nominal) das alíquotas. Não se pode achar, com seriedade, que um sistema no qual, efetivamente, as faixas de maior poder econômico possam contribuir menos que aquelas com menor poder, no frigir dos ovos, seja equitativo. Com o retorno da tributação de lucros e dividendos, penso, parte da problemática seria resolvida, especialmente se acompanhada do modelo de tributação na fonte acrescido de complementação contributiva da pessoa física. Todavia, mais relevante que isto é, sem dúvida, a revisão da tabela de faixas de contribuição do IRPF.


E quando digo revisão, leia-se, reforma do modo de pensar. Em primeiro lugar, imaginar que somente 5 faixas contributivas (nelas incluída a de isenção) possam representar os reais patamares patrimoniais brasileiros, chega a ser uma piada de completo mal gosto. Em segundo lugar, a variação de renda entre o início da primeira faixa (R$1.903,99) e o início da última (R$4.664,68) é risível. Em que pese o Brasil ser um país com absurda concentração de renda, estabelecer como critério de incidência inicial a renda mensal de R$4.664,68 é verdadeira declaração política de oneração máxima da classe média, equiparando-a, para fins de alíquotas nominais, com os estratos sociais mais abastados. Em derradeiro, o modelo de atualização dos limites mínimo e máximo das faixas contributivas é perverso, senão autoritário, ao depender de uma canetada presidencial (decreto), quando os ventos políticos a desejarem.


Assim, é necessário expandir o sistema de tabelamento, com a inclusão de novas faixas e alíquotas nominais intermediárias de contribuição, com novos limites mínimos e máximos, estabelecidos e atualizados anualmente por meio de critérios econômicos razoáveis – preferencialmente índices que acompanhem o desempenho da inflação. Ademais, uma fiscalização constante da alíquota efetiva de contribuição se faz necessário, de modo a evitar a perversidade de um sistema progressivo de aparências, apartado da equidade que buscamos.


Ah! Quase me esqueço. Não nos deixemos levar pelo sonho da tributação da renda com base em alíquota única e reduzida, cuja tabela gozaria de generosa faixa de isenção fiscal, jogando no mesmo balaio estratos socioeconômicos médios e altos, no fim do dia. Proporcionalidade fiscal é rival da progressividade e inimiga da equidade. Aventuras neste sentido devem ser temidas, não aplaudidas – especialmente pela classe média.


Com este breve aviso, caro leitor, deixo meu "até logo". Nos vemos na parte final e conclusiva de nosso debate.

[1] “Carga Tributária no Brasil 2016 – Análise por Tributos e Bases de Incidência”, Ministério da Fazenda do Brasil. Brasilia/DF, 2017. Pag. 12. Quadro comparativo. Disponível no site da RFB para a consulta do cidadão http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/carga-tributaria-2016.pdf.


[2] “Comunicado do IPEA nº 92 - Equidade Fiscal No Brasil: Impactos Distributivos Da Tributação E Do Gasto Social”, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasilia/DF, 2011. Pag. 6. Quadro comparativo. Disponível no site do IPEA para a consulta e download do cidadão pelo link http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=8499. Acesso em 15/10/2018.


[3] “Progressividade Tributária: A Agenda Negligenciada”, GOBETTI, Sérgio Wulff e ORAIR, Rodrigo Octávio. Rio de Janeiro/RJ, 2016. Pag. 21. Quadro comparativo. Disponível no site do IPEA para a consulta e download do cidadão pelo link http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=27549. Acesso em 15/10/2018.


[4] “Renúncia fiscal deveria ser a metade do que é hoje, defende Jorge Rachid”, Revista Valor Econômico. Brasília/DF. Matéria publicada em 10/05/2018. Disponível no link https://www.valor.com.br/brasil/5515495/renuncia-fiscal-deveria-ser-metade-do-que-e-hoje-defende-jorge-rachid. Acesso em 15/10/2018.


[5] “Brasil é paraíso tributário para super-ricos, diz estudo de centro da ONU”, Nações Unidas no Brasil - ONUBR. Brasília/DF. Matéria publicada em 31/03/2016, atualizada em 01/05/2016. Disponível no link https://nacoesunidas.org/brasil-e-paraiso-tributario-para-super-ricos-diz-estudo-de-centro-da-onu/. Acesso em 15/10/2018.

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