As recentes notícias (aqui[1], por exemplo) de que instituições financeiras brasileiras têm aumentado os juros e taxas de seus contratos vigentes, com pessoas físicas e jurídicas, após anúncio da FEBRABAN[2], com ampla divulgação midiática[3], de que auxiliariam no combate à crise da COVID-19 mediante a moratória de contratos bancários vigentes por 60 dias, causa, no mínimo, estarrecimento geral. A manifestação pública da maior federação bancária aparenta contradição insanável com as atitudes de seus associados, uma semana depois. Muitos micro, pequenos e médios empresários, especialmente, contavam com esta benesse dos bancos. Para além da possível crítica política à inação do BACEN e do Ministério da Economia, cabe-nos analisar os efeitos deste comportamento de quebra da confiança da pessoa natural e da empresa, contratantes destes produtos e serviços bancários.
Não é novidade a qualquer jurista que se aplica o Código de Defesa do Consumidor às instituições financeiras, mormente após a edição do já antigo verbete sumular nº 297, do STJ[4]. Esta relação consumerista é evidente nos contratos ofertados ao mercado de pessoas naturais, podendo ser questionado – como usualmente se faz – quando diante a contratações empresariais. Após a edição da lei 13.874/2019, conhecida como “lei da liberdade econômica”, este argumento aparentou ganhar relevo tendo em vista as normas de sobredireito expostas pelos textos de seu artigo 1º e §§, no tocante à tutela da livre iniciativa e exercício da liberdade econômica, somado à inclusão do art. 421-A, no Código Civil, que estabelece a presunção de paridade e simetria em contratos empresariais. Esquece-se, todavia, da locução “até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção” que apresenta a hipótese de flexibilização daquela presunção legal.
Há certo tempo, a teoria dualista dos contratos, que subdivide este negócio jurídico em contratos tipicamente de direito comum e contratos tipicamente de consumo, vem sendo objeto de crítica por parte relevante da doutrina. Carlos Alberto Garbi, em seu brilhante artigo sobre a tipologia do Terzo Contratto"[5], aborda bem esta questão. Algumas espécies de contratos não se amoldam nem a uma categoria e muito menos à outra, dado que ambas as partes são a princípio livres, mas, dada a uma disparidade de fato, não ocorre uma plena manifestação livre e desimpedida da vontade, capaz de determinar a formação do contrato como um todo.
É preciso, portanto, estudar e desenvolver uma terceira categoria que cuide de aceitar uma “zona cinzenta”, onde a simetria pode não ser presumida (como na relação de consumo), mas certamente existe e é relevante, pois possibilita o abuso do poder econômico por uma das partes em detrimento da outra. Contratos bancários empresariais se encaixam bem nesta definição. A correção judicial nestes casos e diferentemente das relações de consumo, deve ser excepcional e cuidadosa, sob pena de alterar o fino cálculo econômico por trás do acordo. E esta interferência se dará por meio das cláusulas gerais dos contratos – sendo as mais populares, a da boa-fé e da função social do contrato.
Mas o que isto tem a ver com as instituições financeiras, neste momento de COVID-19? Absolutamente tudo. Contratos não são fins em si mesmos, mas sim meios de garantir segurança jurídica no cumprimento de obrigações. Obrigações, por sua vez, são como processos: possuem começo, meio e fim. Por serem processos, demandam a cooperação constante de todos os obrigados para que se atinja sua conclusão – afinal, cumprimento de obrigação é regra, não exceção. Ao longo deste “vínculo processual”, cada ato, de cada parte, contribui para o desenvolvimento de uma percepção única e global de que determinada posição é certa, enquanto o seu oposto, errada ou repreensível – cria-se “confiança”, em uma única palavra.
Exemplifico. Quando escrevo este texto e afirmo ser gratuito o acesso ao seu conteúdo, disponível na rede mundial de computadores, e você, leitor, o acessa, causaria choque e estarrecimento se, ao fim, por meio de comando de programação, travasse a janela de seu navegador enquanto não depositasse determinada quantia, em minha conta pessoal, em troca do que você acabou de ler. Se isto fizesse, quebraria uma regra objetiva de comportamento humano, um standard de conduta, pois seria desonesto e, acima de tudo, não gostaria que fizessem o mesmo comigo. Firo, então, a boa-fé (objetiva), dever anexo e cláusula geral de nosso contrato. Potencialize isso a uma escala de relações consumeristas e empresariais de massa e perceberá o problema.
Ao informar consumidores e empresas - se assumirmos, é claro, haver diferença entre a posição jurídica de ambos, nos contratos bancários - e permitir que se informasse em jornais, revistas e outros meios de comunicação, que as instituições financeiras ofertariam a suspensão das dívidas bancárias por 60 dias, sem que houvesse aumento nos juros e taxas em legítimo esforço conjunto no combate à COVID-19, a FEBRABAN, em nome e com apoio de seus associados, gerou legítima expectativa a toda uma gama complexa e variada de seus tomadores de serviço em não haver novação em suas obrigações contratadas. Sorrateiramente buscar (re)“negociar” o contrário, caso a caso, ofertando juros e taxas dobradas (até mesmo triplicadas, em determinados casos) ou entraves à moratória, é tentar legitimar um típico abuso de direito, ilícito nos termos do art. 186 do Código Civil, pois fere o postulado da boa-fé objetiva, a ser observado na formação, execução e posterioridade dos contratos, consoante art. 422 do códice civilista.
Mantida esta situação de desrespeito em massa a consumidores e empresas, não só medidas judiciais são cabíveis para tolher este comportamento – fazendo com que a boa-fé atue em sua função corretiva -, como também as pessoas elencadas no art. 82, do CDC, estarão legitimados à promoção da tutela coletiva dos consumidores, nos termos do art. 81, do mesmo diploma. Caberá, aos bancos, órgãos de controle estatais e ao Judiciário mesmo, já em seu limite, a cautela para evitar-se uma judicialização em massa destas questões, garantindo-se, efetivamente, um esforço conjunto no combate aos danosos efeitos econômicos da COVID-19, tal qual anunciado em um primeiro momento – mesmo que isto implique redução de ganhos finais.
Referências:
[1] “Bancos elevam juros e restringem negociação com a crise do coronavírus”. Link para o sítio eletrônico: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/03/bancos-elevam-juros-e-restringem-negociacao-com-a-crise-do-virus.shtml. Acesso em: 27/03/2020. Vide também: “Bancos prometem ajuda, mas dobram juros e seguram dinheiro, dizem empresas”. Link para o sítio eletrônico: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/26/coronavirus-juros-alta-prazo-corte-linha-credito-antecipacao-recebivel.htm. Acesso em: 27/03/2020. [2] “Conheça as iniciativas do setor bancário para amenizar os efeitos do coronavírus”. Link para o sítio eletrônico: https://portal.febraban.org.br/noticia/3428/pt-br/. Acesso em: 27/03/2020. [3] “5 bancos prorrogam vencimento de dívidas de pessoas físicas e MPES”. Link para o sítio eletrônico: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/16/bancos-vao-prorrogar-vencimento-de-dividas-de-pessoa-fisica-e-mpes.htm?cmpid=copiaecola . Acesso em: 27/03/2020. Vide também “Clientes dos cinco maiores bancos podem pedir prorrogação de dívidas”. Link para o sítio eletrônico: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-03/clientes-dos-cinco-maiores-bancos-podem-pedir-prorrogacao-de-dividas. Acesso em: 27/03/2020. [4] “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras.” [5] GARBI, Carlos Alberto. "Il Terzo Contratto" — Uma nova categoria de contratos empresariais?. Revista Consulto Jurídico - ConJur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-jul-30/direito-civil-atual-il-terzo-contratto-categoria-contratos-empresariais?imprimir=1. Acesso em: 27/03/2020
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