1. INTRODUÇÃO
O assunto das drogas no Brasil é sempre motivo de bastante polêmica. É pauta no STF, é assunto dos candidatos à Presidência da República, é discussão em vários círculos sociais. O tema está mais próximo de nós do que imaginamos.
Como um dos países no mundo com mais processos criminais envolvendo drogas (só no Estado de São Paulo, durante o ano de 2017, foram 127.067 ações penais tramitando no Poder Judiciário[1]), e uma legislação que não estabelece uma diferença clara entre usuário e traficante[2], existe uma perigosa margem para a arbitrariedade dos agentes públicos (Polícia, Ministério Público e Judiciário) ao tratar desses casos na Justiça. Soma-se a isso duas informações importantes: a dúvida bastante comum sobre o uso de drogas ser crime ou não, além da crescente polêmica sobre a sua descriminalização.
Arbitrariedades do Poder Público e desconhecimento pela população não andam bem juntos. Trazem insegurança jurídica e intranquilizam as pessoas. Este texto pretende, de maneira bem simples, explicar as diferenças entre usuário e traficante de drogas do ponto de vista legal no Brasil e, quem sabe, trazer esclarecimentos à população em geral sobre o assunto.
2. USUÁRIO OU TRAFICANTE?
A lei 11.343/2006 traz uma diferença – mesmo que confusa – entre usuário e traficante. Pelo artigo 28 da lei, o usuário é aquele que adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou traz consigo, para consumo pessoal, drogas, ou quem semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de drogas.
Já pelo artigo 33 da mesma lei, traficante de drogas é aquele que importa, exporta, remete, prepara, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, tem em depósito, transporta, traz consigo, guarda, prescreve, ministra, entrega a consumo ou fornece drogas, ainda que gratuitamente. Também é traficante quem pratica os atos acima com matéria-prima destinada à produção de drogas, semeia, cultiva ou faz a colheita de plantas que sejam matéria-prima para a sua produção. A pena para essas atividades varia de 5 a 15 anos. Quem comete esses atos, mas é réu primário e possui bons antecedentes, sem ligação com organizações criminosas, também tem direito a um redutor de até 2/3 (dois terços) de pena.
Em algumas situações, é fácil distinguir usuário de traficante, como alguém sendo flagrado vendendo droga. Já em outras (portando droga), a linha é mais sutil. Perceba que a única diferença entre usuário e traficante, nesse caso, é a finalidade para que se porta a droga. Se é para consumo pessoal, diz o artigo 28, é usuário; já se a destinação é a venda ou entrega, mesmo que gratuita, é caso de tráfico.
Até aqui, tudo bem. O problema é: como se prova que a droga era para consumo pessoal ou tráfico? No Direito Penal, existe a presunção de inocência: o acusador (o Ministério Público) é aquele que deve provar que a droga era para traficância, e não para consumo. E é aí que a situação se agrava: como? E se uma pessoa consome muita droga? Quanto é muito, aos olhos da lei? Não existe um número claro, não foi estabelecido um critério. E assim, a autoridade que determina o que é esse muito, às vezes colocando atrás das grades gente que só “curte fumar um baseado”.
Como o critério não é bem claro[3], encontramos os mais variados absurdos Brasil afora: em São Paulo, é considerado traficante quem porta mais de 8,5g de crack, enquanto no Paraná, Santa Catarina e Bahia, esses números giram entre 1 e 2,6 g da mesma substância. Para a cocaína, temos o mesmo problema: em Mato Grosso do Sul, usuário é quem porta até 6,2 gramas da droga, enquanto esse número não passa de 1,65g na Bahia.[4] A maconha também varia absurdamente: enquanto em São Paulo é traficante quem porta mais de 20g da droga, o Supremo Tribunal Federal já entendeu como usuária pessoa com 69g da substância.[5] Além dos números, devem ser considerados a natureza da droga apreendida, o local da prisão e os antecedentes do acusado. A decisão fica a critério das autoridades (polícia, Ministério Público e Judiciário), que, na prática, nem sempre tratam do tema com critérios claros.
3. O CRITÉRIO SOCIOECONOMICO
Na prática, o critério (oculto) é social. Jovens negros ou pardos, periféricos, com menor escolaridade e menos renda são, em geral, o estereótipo do criminoso aos olhos das autoridades[6], e, portanto, são o maior número de processados por esse crime.
Assim, a pessoa que tem “cara de traficante”, mora em “bairro de traficante”, muitas vezes já é rotulada automaticamente. E vai responder ao processo presa, por vezes durante mais de um ano, até o julgamento final, na maioria das vezes, condenação. Quem é branco, de classe média/alta e estudante – e que normalmente pode pagar pelos melhores advogados – em geral é condenado por uso, quando muito. Explico: portar drogas para consumo pessoal também é crime, mas a pena é diferente, bem mais suave – geralmente uma advertência sobre os efeitos nocivos das drogas ou a participação em cursos educativos. Por isso, quem sofre mais com o sistema são os que já são menos favorecidos; o sistema de justiça criminaliza a pobreza e acentua as desigualdades sociais.
4. CONCLUSÃO
Uma acusação por tráfico de drogas, aos olhos do Poder Público, é mais uma em um universo de milhares de processos criminais. Porém, nem sempre a acusação condiz com o que realmente ocorreu, sendo muito comum a confusão entre usuário e traficante. Também se pode concluir que a população marginalizada é aquela mais afetada com essa “criminalização da desigualdade social”, porque, em geral, não pode pagar por uma defesa especializada[7], além de já começar o “jogo processual” em desvantagem por conta de um preconceito estrutural no sistema de justiça, que relativiza a presunção de inocência.
Como proposta de alteração dessa realidade, fica a sugestão de atuação sempre combativa dos advogados de defesa, questionando as ilegalidades e as acusações e provas infundadas, além de uma avaliação mais criteriosa por parte das autoridades judiciais, para aceitar só provas firmes, da traficância; na dúvida, a balança deve pender a favor do réu.
[1] Dados do estudo Justiça em Números 2017, disponíveis em http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/12/b60a659e5d5cb79337945c1dd137496c.pdf e https://paineis.cnj.jus.br/QvAjaxZfc/QvsViewClient.aspx?public=only&size=long&host=QVS%40neodimio03&name=Temp/377cc0cdf509454e9e421c69060619f6.html. Acesso em 20/08/2018.
[2] Disponível em https://nacoesunidas.org/acordo-preve-resposta-as-drogas-sob-perspectiva-de-saude-publica-nas-americas/ , https://nacoesunidas.org/onu-politicas-globais-sobre-drogas-devem-ter-vies-de-saude-e-direitos-humanos/ e https://nacoesunidas.org/repressao-as-drogas-deve-respeitar-direitos-humanos-defende-onu/. Acesso em 04/06/2018.
[3] Disponível em https://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/as-condenacoes-por-trafico-de-drogas, Acesso em 20/08/2018.
[4] GOMES, Maria Tereza Uille. Estudo técnico para sistematização de dados sobre informações do requisito objetivo da Lei 11.343/2006. Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, Curitiba, 2014, p. 13. Disponível em www.politicassobredrogas.pr.gov.br. Acesso em 20/08/2018.
[5] Disponível em https://oglobo.globo.com/sociedade/diferenca-entre-traficante-usuario-a-renda-diz-advogado-de-jovem-preso-com-69-gramas-de-maconha-1-16158323. Acesso em 20/08/2018.
[6] Disponível em http://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2013/01/pm-de-campinas-deixa-vazar-ordem-para-priorizar-abordagens-em-negros.html. Acesso em 20/08/2018.
[7] Sem desmerecer, de modo algum, a atuação sempre combativa das Defensorias Públicas.
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